Menino criado solto, numa pequena cidade do interior, Flávio nunca se acostumou com a vida de cidade grande. A formalidade de trabalhar vestindo terno e gravata, a tensão do trânsito, a limitação de espaço por morar em apartamento, tudo isso aumentava a vontade de voltar para o interior. Volta impossível, ele sabia; os filhos estudando, os empregos estáveis, dele e da mulher, a boa situação financeira, nada disso existiria se voltasse para sua cidade.
O jeito foi arranjar uma solução paliativa: comprou um sítio para passar os fins-de-semana. Apenas
O caseiro, o Edes, demonstrava boa vontade para trabalhar; pelo combinado, as galinhas, os porcos, eram metade do patrão, metade do caseiro. O arranjo parecia satisfatório, e o tempo foi passando.
Flávio, porém começou a perceber que havia problemas naquele paraíso. Os ovos, por exemplo, sempre tão poucos, apesar da grande quantidade de galinhas. E se morria uma ou outra criação era sempre da sua meia parte, nunca da parte do caseiro.
'Bem', pensava, 'o olho do dono é que engorda o gado, já dizia meu pai. Se não posso ficar aqui a semana toda, não tenho mesmo como controlar essas coisas. É melhor nem pensar nisso; afinal, comprei o sítio para ser feliz, e não para ter mais um motivo de preocupação'.
Normalmente, a família saía para o sítio no sábado, bem cedo. Mas, numa certa sexta-feira, Flávio chegou em casa extremamente aborrecido; tinha sido uma semana exaustiva, com vários problemas no escritório. Ele, então, resolveu:
- Estou querendo ir para o sítio hoje mesmo. Arrumem as coisas, ponham no carro; vamos jantar rápido, para não sair muito tarde.
Só conseguiram sair lá pelas nove e meia da noite. Quando entraram no trecho de estrada de terra, Flávio começou a ouvir um barulho estranho no motor; numa subida mais forte, o carro de repente parou de vez.
- Era só o que me faltava! E não trouxe nem lanterna, para tentar ver o que há nesse carro.
- Eu trouxe vela, quem sabe dá para você enxergar onde é o defeito? - disse a mulher.
- É, o jeito é tentar, ou vamos ter de dormir aqui mesmo, no meio da estrada. Noite de lua nova, uma escuridão enorme; mas Flávio deu a sorte de descobrir o que acontecera; era só um cabo que se soltara. Satisfeito, arranjou um barbante, amarrou a peça solta e o carro voltou a funcionar.
Já era quase meia noite quando chegaram no sítio. Os meninos, sonolentos, pegaram as mochilas, queriam entrar logo em casa e dormir. Só então descobriram que tinham deixado as chaves no apartamento.
- O que mais falta acontecer? Que dia mais azarado!
- Flávio reclamou. E agora?
- Vai lá na casa do Edes, ele tem chave aqui da casa - lembrou a mulher.
- Ir andando no meio do mato, numa noite escura dessas, não vai ser nada fácil...
- Uai, leva a vela!
Com um suspiro resignado, Flávio acendeu a vela e foi seguindo pela trilha em direção à casa do Edes. Enquanto andava, ia chamando:
- Edes! Ô Edes!
A casa, lá adiante, continuava escura. Foi-se aproximando, continuando a gritar, queria acordar o caseiro e pegar logo a chave.
- Edes! Ô Edes!
Já bem perto, começou a ouvir uma voz, apavorada, gritando:
- Perdão, ai meu Deus, perdão! Juro que não faço mais! Perdão! Não deixa ele me levar, não, meu Deus!
Era a voz do Edes. Espantado, Flávio gritou:
- Edes! Ô Edes! O que houve? Que isso que você está falando aí?
Fez-se um súbito silêncio. Abriu-se então uma frestazinha na janela:
- Que...quem está ai? É o senhor, seu Flávio?
- Sou eu, Edes! Preciso da chave da casa, vim aqui buscar...
- Ai, doutor, acordei no meio da noite, ouvi uma voz me chamando, vim olhar, vi uma luzinha andando no meio do mato, pensei que era o diabo vindo me pegar,!
- E estava pedindo perdão por quê?
Ainda trêmulo, os olhos esbugalhados, Edes falou:
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