Dona Antonia era benzedeira. Em casa, mesmo morando numa grande capital, como São Paulo, para certas enfermidades ou “ziquizilas”, minha avó sempre chamava Dona Antonia. Para alguns casos, como quebranto, arca caída, minha avó mesma benzia. Lembro-me de Dona Antonia falando baixinho perto de mim. Bem menina, eu ficava com vergonha e escondia a boca entre as mãos para rir. Havia todo um ritual: antes mesmo de “pôr as mãos” sobre minha cabeça ou em qualquer outra parte do corpo, D. Antonia sussurrava algo, entoando como cantiga de procissão. Falava de olhos fechados, num sentido de reverência, postura humilde. Mas não falava comigo. Apertava o alto de meu umbigo e me deixava ver um sorriso leve em seu rosto.
De repente, D. Antonia abria os olhos, quase que em câmera lenta. De dentro deles, uma fantástica luz. Ela não mais me olhava no rosto e sim para onde estava o objeto de minha enfermidade. Seu olhar parecia que passava por dentro de mim. Um olhar calmo, generoso, porém palpável.
Um grande silêncio tomava conta do lugar. No terreiro, ouviam-se os meninos jogando bola e o cachorro correndo atrás. Mas era tão distante o som...Quase fim de tarde, quando o sol torna-se alaranjado, e D.Antonia havia desaparecido de minha frente enquanto eu olhava pela janela. Cheguei a pensar que realmente ela havia sumido, como nas histórias de anjo que minha avó contava. Mas nesse tempo em que eu olhava o cenário do fim do dia, D. Antonia ia para o fundo da casa e voltava com alguns raminhos. Instantaneamente, o lugar ganhava um cheiro especial, um cheiro que até hoje tenho das tardes de sol alaranjado.
D.Antonia me pedia para ficar com as mãos sobre os joelhos, com as palmas para cima. Eu precisava fechar os olhos. Mas, nessa posição, eu sempre achava que alguma coisa iria aparecer em minhas mãos. Então, fechava muito bem apenas um olho e o outro eu mantinha entreaberto. Mas nada acontecia.
Outra vez, D. Antonia começava um sussurro. Dessa vez, mais alto e nítido:
Coberto com manto de Jesus Cristo, essa filha estará salva de todos os maus olhados, da inveja, do ciúmes...com proteção de Anjo Gabriel que encontrou a virgem santíssima e lhe saudou três vezes: o braço de Deus detenha quem fizer mal, o braço de Deus detenha quem fizer mal, o braço de Deus detenha quem fizer mal... amém.
O som me embalava e eu quase adormecia sentada na cadeira. A dor, se tinha, não lembrava mais dela. Apenas um certo sono e um cheiro de raminhos. Às vezes, as folhinhas batiam no meu rosto quando, com elas, se fazia o Nome-do-Pai. Achava bom as gotinhas de água das folhinhas respingarem
Eu abria os olhos quando eu não mais ouvia D. Antonia falar e quando eu não mais sentia os raminhos. Ela me deixava quietinha, sentada. Quando via que os olhos se abriam, um de cada vez, ela me dava um copo com água e pedia que voltasse no outro dia.
Sem muitas forças nas pernas, não adiantava querer voltar correndo para casa. Tudo parecia em câmera lenta, como o olhar de D. Antonia. Caminhava para casa, sem fazer questão de chegar logo. O sol estava se pondo e eu não mais sentia dor.
Alguns anos depois, perguntei à minha avó por que D. Antonia sussurrava bem baixinho, antes de começar a benzer. Minha avó dizia que ela conversava com meu Anjo da Guarda, pedindo permissão para cuidar de mim.
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