Aílton, o outro filho do Brasil
Por Júlio Meira, especial para o Yahoo! Brasil
Fotos de Tuca Vieira
A "noite" de toda cidade é invariavelmente habitada por um elenco enorme de figuras e folclores. Mesmo para o viajante, é fácil muitas vezes pinçar de imediato, de dentro de um mundo tão repleto de opções, um rosto, uma personalidade destacada. O taxista que não olha para a frente, o barman de amizade rápida, o amigo cujo nome ninguém sabe, o desconhecido simpático e o conhecido antipático... Tudo isso, afinal, são pessoas e tipos comuns, que compõem, digamos assim, a constelação noturna de qualquer um de nós.
A cantora invariavelmente gorda e o velho solitário que dela não desgruda... O homem que fala muito alto, o casal que discute muito alto, as cocotas que fofocam como se estivessem sós no banheiro de uma delas, o bêbado que tromba e tropeça, sempre na moça mais bonita e entojada do lugar, o furador de espera, o fortão irritadiço que organiza um motim contra a hostess, a perua maquiada que apóia o fortão, cutucada pelo "maridão" banana...
O interessante sobre esse "ligeiro" Aílton é que o seu transparente carisma não habita uma face de grandes ou largos sorrisos, ao contrário do que o anedotário talvez preferisse. O homem fala pouco, e fala baixo. Impressiona pela extrema rapidez e agilidade com a qual se desloca entre as mesas do bar, corre de ponta a ponta, leva pratos, pega copos, conversa com uns, abraça outros, olha firme nos olhos de todos.
"Nunca dei para trabalhar de dia", rememora quando enfim conversamos um pouco. "Sei que, assim, vivo no contra-fluxo. Mas vivo bem. Muito bem, acho eu". Ninguém joga xadrez sobre o piso preto-e-branco do salão, mas Aílton, parrudo, é obviamente o rei desse estreito tabuleiro. Ou talvez o bispo, a julgar pelas diagonais improváveis que ele traça entre as mesas, entre os braços, entre os gestos cada vez mais espalhados da sua fiel clientela.
Duas décadas de noite
A vida em São Paulo, para Aílton Manoel da Silva começou há mais ou menos 20 anos. A família, a origem, é humilde. Aílton nasceu no agreste, em Pernambuco, na minúscula cidade de Panelas de Miranda, latitude mediana entre Caruaru, ao norte, e a celebrizada Garanhuns, ao sul. A mãe era "severa", diz ele: "honesta e sabida. Hipertensa". O pai bebia muito, só parou aos 45 anos, e hoje, com quase 75, é um amigo querido de quem tem saudades. "Mas trazer o meu pai para cá, para São Paulo, a essa altura... É coisa que até já pensei em fazer, mas não tem cabimento... Tirá-lo de lá, fazê-lo dependente de mim? Acho que seria egoísta...", pondera.
A mãe morreu há pouquíssimo tempo, pouco mais de um ano. O pai "está forte" e ainda "capina", na roça "de subsistência", embora esteja cego de um olho. Distante da família original e perto da família construída, assim vive Aílton a vida, que descreve "pacata". Mora em Cotia, cidade da Grande São Paulo.
Casado com pernambucana, conheceu-a em São Paulo: "mulher de garra, totalmente dedicada à família e ao trabalho". Tem dois filhos, Gabriela e João, o menino é um bebê recém-nascido. Folga às segundas, dorme às 7h e acorda cotidianamente às 14h. Fica em casa, com o filho, até as 19h: a menina, nesse horário, está na escola.
Trabalha diariamente das 21h até "o último cliente". Antes de começar, bebe um café expresso, já no balcão do bar, mas ainda "à paisana". Fuma um cigarro. Troca de roupa no vestiário: gravata borboleta preta sobre camisa branca, colete branco de três bolsos, calça preta folgada e fresca, mocassin também preto.
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Às 6h, "mais ou menos" está "de volta", em casa. Não se atreve a sair de Cotia, exceto em fins de semana, porque o trânsito "proíbe". "A pontualidade é uma coisa que acabou. Não é mais possível", alerta. "Eu vejo, no bar, a quantidade de pessoas que estão esperando, esperam por alguém que não chega. Trocam-se telefonemas, as pessoas estão presas, aqui e ali, demoram".
"Quando tenho mais tempo", conta, "vou ao centro de São Paulo. Gosto de lá, dos prédios, da arquitetura. Acho que é o pedaço mais bonito da cidade". Para chegar até ali, no entanto, "só aos sábados e domingos, de vez em quando: o trânsito de São Paulo é a pior coisa da cidade. Não há nada pior do que isso. E a tendência, na minha opinião, é piorar".
Em Miranda, Aílton cresceu em casa simples. Não tem grandes coisas a contar daquele tempo. Ou não quer. A vida para ele parece ter mesmo começado, ou recomeçado no sudeste, em meados dos anos 80, quando chegou a São Paulo, aguardado e abrigado por um primo que morava no Bixiga, na rua São Vicente. "Minha realidade é a realidade da grande maioria do povo nordestino que vem para cá", teoriza.
"Sempre existe um parente mais próximo, que veio antes". O primeiro emprego de Aílton foi já "no serviço": copeiro do lendário restaurante paulistano Gigetto, não ficou, no entanto, muito tempo na casa. "Trabalhava de dia, e sofria. Me sentia muito só, na cidade, à noite", confessa, noturno.
Da copa do Gigetto, onde esteve por apenas 2 meses, passou para o restaurante Piolim, "rua Augusta 88", onde ficou por 7 anos, aparentemente saudosos: "O serviço de bar, naquela época, era como se fosse uma carreira mesmo. Você tinha uma sequência, entendeu? Um aprendizado, os profissionais mais velhos. O meu professor foi o velho Zé Mussum, mâitre do salão de lá", recorda com carinho.
"Foi lá, e com ele, que peguei esse gosto por trabalhar com gente... Assim no meio das pessoas". A carreira de Aílton envolveu muitos bares e casas, em toda a capital paulista: Cantina do sargento, Cantina do Lelis, Panino giusto, cantina Vecchia Roma, Cervejaria Continental. A carreira o levou até mesmo à Ilhabela, no litoral do Estado, num hotel onde enfim conheceu os donos do bar onde hoje trabalha. Um bar que então não existia e do qual, reza a lenda, Aílton foi "o nº 1", o primeiro contratado: "Em 10 de abril de 2000, abrimos as portas daqui. Há 10 anos".
A alma do bom garçom
O escritor Paulo Mendes Campos dizia: "Todo frequentador de bar tem o direito de embriagar-se convenientemente uma vez por outra. Quem vende bebida deve ser linchado quando exige de seus clientes comportamento de casa de chá".
Às duas da manhã, garoa (afinal é São Paulo), e Aílton se aperta com dois outros homens, entre um toldo e a copa rala de uma árvore miúda, numa pausa de trabalho, com cigarro, do lado de fora da casa.
"O uísque não me interessa", dizia também Mendes Campos, "o que me interessa é a criatura humana, esta pobre e arrogante criatura...". Sem ler ou conhecer o escritor brasileiro, a filosofia profissional desse Aílton de 40 anos, consiste mais ou menos no seguinte: "O garçom é responsável pelo embriagado e deve ser solidário com ele. As pessoas, em geral, chegam sóbrias aos bares, certo?". Certo. "E é pelo garçom que se embebedam, certo?". Certo. "Não se pode dispensar, abandonar um cliente que excedeu. Tem que tomar conta. A vida ensina isso. Já levei até gente para casa, no meu próprio carro", conta, divertidamente.
Essa espécie de código pessoal de conduta foi originalmente construído e formulado por Aílton ao longo de seus 22 anos de experiência "pública". Sobre a possibilidade de "controlar" um beberrão contumaz, sua filosofia pessoal propõe um paradoxo irônico e bem-humorado: "Você acha possível tornar alguém consciente de que não está mais consciente?". É impossível não pensar que, em tempos de "Lei seca", um "mâitre" como esse é tudo de que uma cidade precisa.
"O engraçado é justo eu, que tenho uma história familiar de bebida, ganhar minha vida 'administrando' essas coisas, né?". Outra coisa que Aílton parece querer administrar muito bem é o "carinho": para ele, o valor supremo do ofício, das regras do "bem servir".
"É o valor essencial da coisa. Porque tudo o que as pessoas querem é serem bem tratadas. Para agradar, satisfazer, já topei até tirar um sanduíche, de mortadela, metade quente metade frio", gargalha.
"O serviço se simplificou bastante nos últimos anos, em termos de regra, de talheres, de louças, de copos, de obrigações de fazer assim ou assado. Mas há coisas que permanecem. Num homem não pode faltar caráter, bondade e fibra. Num garçom, além disso, tem que sobrar gentileza".
Por fim, "uma coisa melhorou demais: o garçom hoje é um profissional muito mais bem tratado do que foi em outros tempos. Ninguém vai perder o emprego por servir um cafezinho friozinho", comemora. São três horas da manhã, e o bar de Aílton transformou-se finalmente num autêntico "inferninho" (sem tabaco), bem ao gosto das crônicas de Mendes Campos.
Ajeitando o colarinho, ele apaga e pisoteia uma bituca, limpa o suor do rosto e corre para continuar a regência da orquestra. Baixinho, some na multidão. A conversa foi rápida. O que, afinal, parece distinguí-lo, na massa dos seus noturnos, é uma enorme elegância corporal, estranha, na verdade, para um corpo tão compactado. Estamos tão acostumados a modelos de elegância longilínea... Aílton emana um sentido geral de cortesia que todos ao redor parecem perceber, mesmo que inconscientemente. Vai nisso algo das mitologias sobre a hospitalidade afável do brasileiro.
Diz o dito popular que o bom garçom é como o "craque": tem um ou dois olhos na nuca, existe para servir aos colegas. Se isso é de fato verdade, Aílton parece "bem servir" por estar igualmente bem servido, de olhos e de espírito. Talvez seja isso.
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